
Transubstanciação:
um guia para iniciantes
Ao longo dos séculos a Igreja se apropriou de um sólido arcabouço conceitual e filosófico que lhe permitiu explicar de forma racional o mais belo e profundo dos mistérios que ela guarda: o Santíssimo Sacramento.
A presença real de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo na Sagrada Eucaristia é um dos maiores mistérios da nossa fé. De fato, quando o sacerdote celebra a Missa segundo o rito romano tradicional, ele sussurra estas palavras enquanto consagra o Precioso Sangue: Mysterium fidei. Ao longo dos milênios, a Igreja Católica meditou com amor sobre esse mistério, e seus grandes teólogos, embora reconhecendo com humildade os limites da razão para sondar o que é divino e sobrenatural, foram, não obstante, capazes de apresentar uma defesa razoável dele contra todas as objeções que a incredulidade e a heresia lhe fizeram.
No mundo moderno, onde imperam o materialismo, o cientificismo e o ceticismo, a mudança misteriosa chamada pela Igreja de transubstanciação possui seus escarnecedores e pretensos desmistificadores — até mesmo em suas fileiras há dissidentes ocultos ou de facto, como os modernistas que povoam muitas universidades, seminários ou chancelarias católicas. Como católicos que procuram compreender e viver a fé de modo mais profundo, precisamos nos apropriar da sensata filosofia da realidade que fornece à Igreja matérias-primas para definições dogmáticas. Se fizermos isso, teremos maiores chances de chegar a um pensamento lúcido sobre essa admirável obra de Deus e, deste modo, atingir uma posição que nos permita falar dela para outras pessoas.
É por essa razão que ofereço aqui um guia para iniciantes sobre a transubstanciação. Não será uma leitura fácil. Os mistérios da fé desafiam nossa razão limitada e débil até o ponto de ruptura, mas sem rompê-la. Ao contrário de um músculo, que fica cansado ou mesmo machucado pelo uso, nossa mente se fortalece à medida que a usamos, como Aristóteles afirmou há muito tempo. Menciono Aristóteles, o filósofo racional por excelência, não apenas por ser meu filósofo grego favorito (todos devem ter um favorito), mas porque na realidade ele legou a Santo Tomás as ferramentas conceituais para debater a transubstanciação. Embora o mistério jamais deixe de ser uma maravilha e um milagre que supera todo o pensamento humano, pode ser explicado à mente de modo que não mais pareça uma contradição ou impossibilidade colossal
Um breve manual de filosofia
Como é fundamental para a doutrina da Igreja sobre a transubstanciação a distinção entre “substância” e “acidente”, qualquer um que procure compreender de modo mais profundo os sagrados mistérios fará bem em empregar um pouco de tempo para compreender a que se referem esses termos.
A distinção entre “substância” e “acidente”, apesar do aspecto técnico dos termos, baseia-se na experiência cotidiana. Embora o uso moderno restrinja com frequência o significado de “substância” aos elementos ou substâncias químicas, e o de “acidente” a um evento não intencional e geralmente prejudicial, seu sentido filosófico é muito amplo. A palavra “substância” diz respeito a qualquer ente individual, a qualquer coisa que exista em e por si mesma — como, por exemplo, um homem, um cavalo, uma planta, uma pedra — e tem uma natureza própria (diferentemente de um banco, por exemplo, que, embora tenha uma definição, não possui natureza própria, mas é o resultado de uma arte que junta diferentes substâncias naturais).
O termo “substância” deriva de sua função: é “aquilo que está por baixo” (latim substantia; grego hypostasis), em contraste com o “acidental” (latim accidens; grego: symbebekos), “aquilo que sucede à, acontece com, pertence à” substância. Uma substância existe em si, ao contrário do que existe numa substância. Cor, formato, peso, conhecimento, virtude, paternidade, filiação são exemplos de coisas que existem numa substância, não em si mesmas. Cor, formato e peso existem verdadeiramente, mas como pertencentes a algo que é colorido, tem formato ou peso. Nunca vemos a brancura, mas antes um cavalo branco ou uma cadeira branca; nunca vemos a justiça, mas antes um homem justo ou uma lei justa [1]. Quando dizemos que alguém tem 1,82m de altura, queremos dizer que seu tamanho é uma quantidade de sua substância: ele tem 1,82m de altura. A paternidade não existe separada de uma pessoa em relação a outra. O conhecimento só tem existência na mente daquele que conhece; é um acidente próprio de sua alma.
Há dois tipos de acidente: o genérico (acidente não próprio) e o acidente próprio, também conhecido como “propriedade”. Acidentes não próprios podem vir a ser e desaparecer na mesma substância. É o que acontece com um homem pálido, que pode ficar moreno por causa do bronzeamento, ou com um homem sem conhecimento musical, que pode se tornar um músico e, pela falta de treinamento, pode perder esse hábito. Um acidente próprio, por outro lado, está enraizado em e deriva da natureza de uma substância, de modo que está sempre presente quando a substância está presente (por exemplo, a capacidade de rir ou de falar, que deriva da natureza racional do homem). São chamados acidentes porque existem apenas numa substância, mas são chamados propriedades porque são próprios de certo tipo de substâncias e sempre as acompanham. Portanto, seria um equívoco definir “acidente” como aquilo que pode ser ou não ser; alguns acidentes são permanentes e outros, mutáveis. A noção importante na definição de “acidente” é a seguinte: ele existe em, ou é próprio de, um sujeito subjacente. (A única exceção é o mistério da Eucaristia, no qual, pelo poder divino, os acidentes do pão e do vinho existem sem um sujeito subjacente, como veremos abaixo.)
Acidentes são, portanto, sempre distintos da substância, que é a fonte de sua existência. Se não existisse nenhum animal racional, não haveria nenhum fundamento para as propriedades da fala e do riso ou para acidentes como alto, corajoso, musical etc [2].
Como obtemos nosso conhecimento sobre a realidade por meio dos nossos sentidos, só conseguimos perceber diretamente as características acidentais das coisas. Não obstante, a existência da substância é inferida facilmente a partir de nossa experiência dos entes individuais (este homem, este cavalo) e da impossibilidade de uma qualidade abstrata (brancura, musicalidade, justiça, altura) existir separada de um sujeito ou indivíduo modificado por ela. Os acidentes que percebemos apontam para um nível mais fundamental de existência que lhes permite existir. Uma pessoa pode mudar de cor ou de peso, adquirir ou perder virtudes sem deixar de ser a mesma pessoa; substância é o princípio permanente que subjaz a todas as outras características.
Isso nos leva a um sentido mais amplo de substância: aquilo que verdadeiramente é, o fundamento essencial, ao contrário daquilo que é mutável ou derivado. Neste sentido, a natureza ou essência de uma coisa é às vezes chamada de “sua substância”, porque a natureza ou essência é aquilo que faz uma coisa ser o que ela é — e, por extensão, a existência [ou o ser] de uma coisa pode ser chamada de substância. Quando o termo “substância” é usado nesses sentidos ampliados, já não significa a contraparte ou o fundamento com respeito aos acidentes; deste modo, quando Deus é chamado de substância, ou as Pessoas da Trindade são chamadas de hypostases, ou falamos da união hipostática entre as naturezas humana e divina em Jesus Cristo, não sugerimos que haja acidentes correspondentes próprios da existência de Deus ou do Verbo. Coisas que são acidentes na alma de uma criatura racional (como seu conhecimento e suas virtudes) são, em Deus, idênticas ao seu ser.
Via padrepauloricardo.org